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Cinema com smartphone: uma história

Redação 24 de março de 2021

O que no passado era entendido como um gracejo do cineasta baiano Glauber Rocha se tornou real no século 21. Literalmente, “com uma ideia na cabeça e uma câmera na mão” (um celular com câmera), é possível realizar um filme nos dias de hoje com algum apuro técnico. Isso sem precisar de uma grande equipe de apoio: basta um bom smartphone e um punhado de vocação que você já pode ser o próximo diretor de cinema no quarteirão.

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Em certa medida, os rumos da sétima arte são definidos pela tecnologia desde sua concepção. Os avanços técnicos na edição cinematográfica durante os anos 1920, por exemplo, permitiram a ascensão de gêneros experimentais como o surrealismo francês e o expressionismo alemão. Já em tempos mais recentes, o desenvolvimento da computação gráfica nos anos 1990 e 2000 – os “famosos CGI” – levaram a direção de fotografia a níveis nunca alcançados, uma vez que o movimento simulado de câmera não se restringe às leis da física.

Atualmente, o smartphone já esteja provocando talvez um efeito semelhante. De um lado, os cineastas e o público filtrando o mundo (e se familiarizando) com diferentes tipos de lentes e resoluções de tela, como explica a teórica Nihan Isikman, autora de recente artigo sobre a influência dos celulares na estética cinematográfica. Do outro, bem no centro disso, a experiência de uma nova linguagem audiovisual, mais cacofônica e herdeira de um momento cultural repleto de vídeos curtos para redes sociais, transmissões ao vivo e miscelâneas de stories na tela do celular.

A questão é: todo esse experimentalismo, no fim das contas, produz filmes relevantes? Um cânone interessante de obras a serem analisadas? A resposta preliminar é sim e tentamos aqui analisar essa pequena tradição recente de filmes feitos com smartphone, além de compreender a primeira questão: por que eles são importantes para o cinema.

A era pré-smartphone

Os primeiros filmes produzidos com celulares surgiram por volta de meados dos anos 2000. O mais célebre deles, SMS Sugar Man (2005/06), do sul-africano Aryan Kaganof, se tornou emblemático – além das cenas com forte conteúdo sexual – por ter sido filmado, de forma surpreendente, quase como um longa tradicional, com razoável iluminação e longos planos de cena.

Para gravar a obra, Kaganof lançou mão do (hoje) humilde Sony Ericsson W900i, um celular que pesava 148 gramas com tela de 320 x 240 pixels e câmera traseira de 2 MP. Por conta disso, o filme sofre um pouco pela carência técnica, em especial para os dias de hoje, embora tenha sido recebido boas críticas no seu tempo.

Vieram outros longas no mesmo tom – como New Love Meetings (2006), um remake low budget da obra homônima de Pier Paolo Pasolini – e a crítica cultural passou a evidenciar o uso da nova tecnologia e suas limitações como propriedades estéticas. A tendência ganhou até um nome, “naked cinema” (cinema nu, em português), uma expressão cunhada pela Reuters após a exibição de Rage (2009), da inglesa Sally Potter, no Festival de Berlim. Pouco depois, Rage seria o primeiro filme na história da indústria a ter sua estreia programada para streaming – em tempos jurássicos, o longa teve que ser dividido em sete episódios para entrar no ar simultaneamente com a exibição nos cinemas.

No início da década seguinte, o lançamento do iPhone 4, o primeiro aparelho da Apple a vir com tela retina, estreitou a relação entre cineastas e smartphones. Feito com o recém-lançado celular, o média-metragem Night Fishing (2011), do sul-coreano Park Chan-wook, impressionou pelas tomadas claustrofóbicas à la filme de horror B. Na mesma época, Searching for Sugar Man (2012), de Malik Bendjelloul (no vídeo abaixo), se tornou o primeiro filme editado em um iPhone a ganhar um Oscar. No longa que conta a história do obscuro cantor americano Sixto Rodríguez, o cineasta sueco ficou sem dinheiro para cortar a última parte da obra e usou um app de iPhone chamado 8mm Vintage Camera para completá-lo.

Tangerine e Distúrbio: marcos no gênero

De todos os filmes produzidos com um smartphone, Tangerine, de Sean Baker, provavelmente é o mais famoso. Filmado com três iPhones 5S, o longa foi lançado em 2015 e chamou a atenção pela originalidade na produção e pela fluidez em sua narrativa. Conforme o filme vai sendo exibido, na verdade, é quase possível esquecer, por um momento, que as cenas foram capturadas por um celular.

Com 88 minutos de duração, Tangerine conta a história de uma trabalhadora sexual transgênero que descobre a traição de seu namorado e cafetão. Baker e o diretor de fotografia Radium Cheung utilizaram um app chamado FilMIC Pro para ajustar foco e temperatura de cor e um adaptador anamórfico produzido pela Moondog Labs para expandir o quadro da tela. O filme custou em torno de US$ 100 mil.

Anos depois, Steven Soderbergh, o ás do cinema independente americano, também filmou um longa inteiro, Distúrbio, com um smartphone – desta vez, um iPhone 7 Plus. Em sua produção dez vezes mais cara que Tangerine, Soderbergh usou o mesmo app de Baker para filmagem e convocou um elenco de maior renome – o papel principal é de Claire Foy, a jovem rainha Elizabeth II em The Crown.

Lançado no Festival de Berlim de 2018, Distúrbio conta a história de uma jovem mulher que é internada em uma instituição psiquiátrica contra sua vontade. Para encenar os ataques de pânico da protagonista, Soderbergh se aproveita do enquadramento mais limitado do iPhone – em comparação a uma câmera tradicional – para descrever a sensação de um espaço fechado. “Há um obstáculo filosófico que muitas pessoas têm sobre o tamanho do dispositivo de captura”, disse Soderbergh, sobre a produção do longa-metragem. “Eu não vejo assim. Vi isso como uma das experiências mais libertadoras que já tive como cineasta.”

Nas bilheterias, Distúrbio faturou em torno de US$ 1,4 milhão, mais de dez vezes o valor da produção.

Os documentários e uma nova figura do público

Há também uma perspectiva documental para o cinema feito por celulares, situada na borda entre a não-ficção e a construção de uma narrativa. Em seu último filme, No Home Movie, a cineasta belga Chantal Akerman registrou uma série de conversas com sua mãe pouco antes de morrer. Boa parte das cenas utilizadas no corte final foram filmadas com um BlackBerry, o que confere um caráter bastante intimista à montagem.

Na opinião do artista visual e cineasta paulistano Diego Ramos Barbosa, é esta aparente familiaridade das pessoas com a presença do smartphone que enriquece tal estética. “Diferente de uma câmera profissional que deixa todos armados à sua volta, o celular é algo natural na paisagem, todos têm um e segurá-lo nas mãos não é esquisito”, explica Ramos, que já produziu nove curtas, boa parte deles adotando essa linguagem. “Por isso, vejo as pessoas indo para o documental para tentar tirar algo mais autêntico. Não é a realidade que é capturada na cena, há sempre o olhar de quem filma, e esse olhar escolhe o que mostra e não mostra. Documentário tem muito de ficção e vice-versa, mas com o celular, dá para filmar sem alterar o cenário em que está filmando, o que é positivo.”

https://www.youtube.com/watch?v=5Qc49gzvJpQ&t=15s

Incidentalmente, o rompimento dessa barreira tradicional entre público e cineasta pode resultar em uma maior participação social na representação do público. Se nas tradicionais narrações documentais, o público é sempre represntado de forma unidimensional, agora ele mesmo pode produzir suas representações no vídeo, como aponta Isikman.

Futuro heterogêneo

Se no início o que definia a estética dos filmes produzidos com telefones celulares era o aspecto lo-fi das imagens, um tanto minimalistas e pixelizados, hoje as possibilidades já ultrapassam as do olhar tradicional. Especialmente quando há exemplos de obras realizadas nessa base em uma diversidade de gêneros: do suspense psicológico de Distúrbio a longas que flertam com a videoarte como Dancers of New York.

As novas tecnologias também tornaram o cinema um meio de produção mais acessível do que no século 20. Hoje, uma produção audiovisual leva menos tempo para chegar ao streaming – ou às salas, em um momento pós-pandemia – pois pode ser filmada com câmeras de celular e editada de forma digital. Essa velocidade na feitura do artesanato interfere diretamente na estrutura narrativa e nos discursos dos filmes, tanto em ficções quanto documentários.

Na história da arte tradicional, o smartphone ainda é relativamente novo. Por conta disso, é cedo para cravar uma conclusão quanto a popularidade do aparelho vai influenciar na produção artística. Dado o que já foi lançado, no entanto, é possível falar que os primeiros indícios são promissores.

Imagem: NeonBrand/Unsplash/CC