O que no passado era entendido como um gracejo do cineasta baiano Glauber Rocha se tornou real no século 21. Literalmente, “com uma ideia na cabeça e uma câmera na mão” (um celular com câmera), é possível realizar um filme nos dias de hoje com algum apuro técnico. Isso sem precisar de uma grande equipe de apoio: basta um bom smartphone e um punhado de vocação que você já pode ser o próximo diretor de cinema no quarteirão.
Em certa medida, os rumos da sétima arte são definidos pela tecnologia desde sua concepção. Os avanços técnicos na edição cinematográfica durante os anos 1920, por exemplo, permitiram a ascensão de gêneros experimentais como o surrealismo francês e o expressionismo alemão. Já em tempos mais recentes, o desenvolvimento da computação gráfica nos anos 1990 e 2000 – os “famosos CGI” – levaram a direção de fotografia a níveis nunca alcançados, uma vez que o movimento simulado de câmera não se restringe às leis da física.
Atualmente, o smartphone já esteja provocando talvez um efeito semelhante. De um lado, os cineastas e o público filtrando o mundo (e se familiarizando) com diferentes tipos de lentes e resoluções de tela, como explica a teórica Nihan Isikman, autora de recente artigo sobre a influência dos celulares na estética cinematográfica. Do outro, bem no centro disso, a experiência de uma nova linguagem audiovisual, mais cacofônica e herdeira de um momento cultural repleto de vídeos curtos para redes sociais, transmissões ao vivo e miscelâneas de stories na tela do celular.
A questão é: todo esse experimentalismo, no fim das contas, produz filmes relevantes? Um cânone interessante de obras a serem analisadas? A resposta preliminar é sim e tentamos aqui analisar essa pequena tradição recente de filmes feitos com smartphone, além de compreender a primeira questão: por que eles são importantes para o cinema.
A era pré-smartphone
Os primeiros filmes produzidos com celulares surgiram por volta de meados dos anos 2000. O mais célebre deles, SMS Sugar Man (2005/06), do sul-africano Aryan Kaganof, se tornou emblemático – além das cenas com forte conteúdo sexual – por ter sido filmado, de forma surpreendente, quase como um longa tradicional, com razoável iluminação e longos planos de cena.
Para gravar a obra, Kaganof lançou mão do (hoje) humilde Sony Ericsson W900i, um celular que pesava 148 gramas com tela de 320 x 240 pixels e câmera traseira de 2 MP. Por conta disso, o filme sofre um pouco pela carência técnica, em especial para os dias de hoje, embora tenha sido recebido boas críticas no seu tempo.
Vieram outros longas no mesmo tom – como New Love Meetings (2006), um remake low budget da obra homônima de Pier Paolo Pasolini – e a crítica cultural passou a evidenciar o uso da nova tecnologia e suas limitações como propriedades estéticas. A tendência ganhou até um nome, “naked cinema” (cinema nu, em português), uma expressão cunhada pela Reuters após a exibição de Rage (2009), da inglesa Sally Potter, no Festival de Berlim. Pouco depois, Rage seria o primeiro filme na história da indústria a ter sua estreia programada para streaming – em tempos jurássicos, o longa teve que ser dividido em sete episódios para entrar no ar simultaneamente com a exibição nos cinemas.
No início da década seguinte, o lançamento do iPhone 4, o primeiro aparelho da Apple a vir com tela retina, estreitou a relação entre cineastas e smartphones. Feito com o recém-lançado celular, o média-metragem Night Fishing (2011), do sul-coreano Park Chan-wook, impressionou pelas tomadas claustrofóbicas à la filme de horror B. Na mesma época, Searching for Sugar Man (2012), de Malik Bendjelloul (no vídeo abaixo), se tornou o primeiro filme editado em um iPhone a ganhar um Oscar. No longa que conta a história do obscuro cantor americano Sixto Rodríguez, o cineasta sueco ficou sem dinheiro para cortar a última parte da obra e usou um app de iPhone chamado 8mm Vintage Camera para completá-lo.
Tangerine e Distúrbio: marcos no gênero
De todos os filmes produzidos com um smartphone, Tangerine, de Sean Baker, provavelmente é o mais famoso. Filmado com três iPhones 5S, o longa foi lançado em 2015 e chamou a atenção pela originalidade na produção e pela fluidez em sua narrativa. Conforme o filme vai sendo exibido, na verdade, é quase possível esquecer, por um momento, que as cenas foram capturadas por um celular.
Com 88 minutos de duração, Tangerine conta a história de uma trabalhadora sexual transgênero que descobre a traição de seu namorado e cafetão. Baker e o diretor de fotografia Radium Cheung utilizaram um app chamado FilMIC Pro para ajustar foco e temperatura de cor e um adaptador anamórfico produzido pela Moondog Labs para expandir o quadro da tela. O filme custou em torno de US$ 100 mil.
Anos depois, Steven Soderbergh, o ás do cinema independente americano, também filmou um longa inteiro, Distúrbio, com um smartphone – desta vez, um iPhone 7 Plus. Em sua produção dez vezes mais cara que Tangerine, Soderbergh usou o mesmo app de Baker para filmagem e convocou um elenco de maior renome – o papel principal é de Claire Foy, a jovem rainha Elizabeth II em The Crown.
Lançado no Festival de Berlim de 2018, Distúrbio conta a história de uma jovem mulher que é internada em uma instituição psiquiátrica contra sua vontade. Para encenar os ataques de pânico da protagonista, Soderbergh se aproveita do enquadramento mais limitado do iPhone – em comparação a uma câmera tradicional – para descrever a sensação de um espaço fechado. “Há um obstáculo filosófico que muitas pessoas têm sobre o tamanho do dispositivo de captura”, disse Soderbergh, sobre a produção do longa-metragem. “Eu não vejo assim. Vi isso como uma das experiências mais libertadoras que já tive como cineasta.”
Nas bilheterias, Distúrbio faturou em torno de US$ 1,4 milhão, mais de dez vezes o valor da produção.
Os documentários e uma nova figura do público
Há também uma perspectiva documental para o cinema feito por celulares, situada na borda entre a não-ficção e a construção de uma narrativa. Em seu último filme, No Home Movie, a cineasta belga Chantal Akerman registrou uma série de conversas com sua mãe pouco antes de morrer. Boa parte das cenas utilizadas no corte final foram filmadas com um BlackBerry, o que confere um caráter bastante intimista à montagem.
Na opinião do artista visual e cineasta paulistano Diego Ramos Barbosa, é esta aparente familiaridade das pessoas com a presença do smartphone que enriquece tal estética. “Diferente de uma câmera profissional que deixa todos armados à sua volta, o celular é algo natural na paisagem, todos têm um e segurá-lo nas mãos não é esquisito”, explica Ramos, que já produziu nove curtas, boa parte deles adotando essa linguagem. “Por isso, vejo as pessoas indo para o documental para tentar tirar algo mais autêntico. Não é a realidade que é capturada na cena, há sempre o olhar de quem filma, e esse olhar escolhe o que mostra e não mostra. Documentário tem muito de ficção e vice-versa, mas com o celular, dá para filmar sem alterar o cenário em que está filmando, o que é positivo.”
https://www.youtube.com/watch?v=5Qc49gzvJpQ&t=15s
Incidentalmente, o rompimento dessa barreira tradicional entre público e cineasta pode resultar em uma maior participação social na representação do público. Se nas tradicionais narrações documentais, o público é sempre represntado de forma unidimensional, agora ele mesmo pode produzir suas representações no vídeo, como aponta Isikman.
Futuro heterogêneo
Se no início o que definia a estética dos filmes produzidos com telefones celulares era o aspecto lo-fi das imagens, um tanto minimalistas e pixelizados, hoje as possibilidades já ultrapassam as do olhar tradicional. Especialmente quando há exemplos de obras realizadas nessa base em uma diversidade de gêneros: do suspense psicológico de Distúrbio a longas que flertam com a videoarte como Dancers of New York.
As novas tecnologias também tornaram o cinema um meio de produção mais acessível do que no século 20. Hoje, uma produção audiovisual leva menos tempo para chegar ao streaming – ou às salas, em um momento pós-pandemia – pois pode ser filmada com câmeras de celular e editada de forma digital. Essa velocidade na feitura do artesanato interfere diretamente na estrutura narrativa e nos discursos dos filmes, tanto em ficções quanto documentários.
Na história da arte tradicional, o smartphone ainda é relativamente novo. Por conta disso, é cedo para cravar uma conclusão quanto a popularidade do aparelho vai influenciar na produção artística. Dado o que já foi lançado, no entanto, é possível falar que os primeiros indícios são promissores.
Imagem: NeonBrand/Unsplash/CC