Já se tornou praxe no Ocidente a fixação de datas como eventos-chave na história, como se fossem gêneses de processos inéditos até então. Para a invenção do telefone celular, por exemplo, o dia 3 de abril de 1973 ocupa tal função. Foi neste dia que Martin Cooper, um engenheiro eletrotécnico que trabalhava para a Motorola, fez o que se considera a primeira ligação de um telefone celular. Não antes de convocar uma coletiva de imprensa. Agora, teria sido esse, de fato, o primeiro aparelho construído para tal função? E se a tecnologia do telefone celular tivesse sido consolidada antes pelo regime soviético?
Algumas respostas parecem bem documentadas nesse sentido. Durante o período da União Soviética, o engenheiro de rádio de Moscou, Leonid Ivanovich Kupriyanovich (1929-1994), produziu um aparelho muito próximo do que se pode chamar hoje de telefone celular. Em sua versão mais sofisticada, a de 1961, o LK-1 chegou a caber na palma da mão, cobrindo um raio de 80 km e fornecendo uma autonomia de 20 a 30 horas – bem mais que o Dynatac, que aguentava 30 minutos de conversa.
A burocracia bolchevique acabaria por priorizar uma pesquisa de telefones celulares para carros em vez do aparelho de Kupriyanovich, mas a produção vanguardística do inventor foi suficientemente registrada para despertar curiosos até hoje. Tentamos entender o enigma: de onde veio, como o aparelho funcionava e, por fim, por que não deu certo.
Tecnologia CDMA: o ponto de partida
O marco inicial na pesquisa sobre telefonia móvel na União Soviética se dá em 1935, quando o cientista e professor Dimitriy Vasiliyevich Ageev (1911-1997) defende uma dissertação sobre recepção de rádio por divisão de códigos. Intitulado “Os Métodos para Tratamento de Ruído na Recepção de Rádio”, o artigo, apresentado no Instituto de Comunicações Eletrotécnicas de Leningrado, descrevia os procedimentos-base para o que, posteriormente, se conheceu como tecnologia CDMA.
Esse tipo de tecnologia foi muito comum nos aparelhos celulares até os anos 2000 – para se ter uma ideia, era um dos padrões usados pela Vivo no Brasil até 2008. Acrônimo para “Code Division Multiple Access” (em português, acesso múltiplo por divisão de códigos), funcionava como um método de acesso a canais por compartilhamento de frequência. O que significa isso? Basicamente, a cada usuário dentro do esquema de rede era dado um código específico, o qual era traduzido apenas pelo receptor.
Para evitar interferências e proteger a privacidade dos usuários, a rede CDMA (podemos classificá-la como um padrão 2G) utilizava um método de espalhamento espectral, no qual a largura de banda usada para transmissão era muito maior do que a necessária para transmitir informação. Isso permitia que o compartilhamento de dados fosse mais rápido e seguro.
Duas décadas mais tarde, em 1957, a mesma tecnologia foi então empregada pelo jovem Kupriyanovich para um modelo experimental de telefone móvel (vamos chamar assim, já que não existia à época o conceito de telefone celular). Em sua versão de entrada, o LK-1, que também contava com um projeto de estação-base, pesava cerca de três quilos e cobria uma distância de 20 a 30 km, com autonomia de bateria de 20 a 30 horas.
A epopeia de Kupriyanovich
Graduado em radioeletrônica pela Universidade Técnica de Moscou, Kupriyanovich trabalhou por vários anos no LK-1, ainda como engenheiro amador. A operação era tão secreta que sua família só teve conhecimento do local de trabalho na década de 1960. Seus primeiros aparelhos móveis, à época chamados de “radiofones”, tinham pouca cobertura e não eram tão compactos.
Foi a partir do registro de patente para o telefone celular em novembro de 1957 que o soviético começou a trabalhar em adequações para o novo aparelho. No ano seguinte, produziu um protótipo pesando apenas 500 gramas; em 1961, o tamanho caiu para 70, já podendo ser utilizado pelas centrais telefônicas da cidade. Uma imagem desta última versão do LK-1 é curiosa, já que ele lembra muito o smartphone contemporâneo – substitua o painel discador por uma câmera frontal e o que sai não fica muito longe de um Nokia dos anos 2000. O inventor também publicou, entre 1957 e 1958, dois artigos na revista “Yunyy Tekhnik” sobre os princípios básicos de funcionamento e o circuito elétrico do telefone móvel, o último respondendo a questões de leitores.
Kupriyanovich chegou a detalhar como funcionaria a comunicação via “radiofone” em entrevista à APN, agência de imprensa oficial do governo soviético. No esquema, uma estação-base de rádio telefônica (ATR, em russo) seria instalada em uma central automática (ATC) de uma determinada cidade, seguindo o caminho radiofone–ATR/ATC–telefone. Da chamada do radiofone à estação, o sinal seria enviado para a central telefônica, a qual codificaria o pulso para uma chamada comum. Com o que Kupriyanovich esperava que fosse possível uma comunicação muito próxima a que temos hoje com os aparelhos 4G: isto é, chamadas possíveis de qualquer lugar, em um avião, em um carro, no mar ou no meio de uma floresta.
“Uma cidade como Moscou só precisa de dez estações de rádio automáticas para ter comunicação por rádio e telefone”, disse o engenheiro, à época da entrevista, em dezembro de 1961.
O governo bolchevique estava atento e fez um minidocumentário, “O Radiotelefone do Engenheiro Kupriyanovich”, sobre a empreitada para o newsreel oficial de ciência e tecnologia em março de 1958 (algumas fontes também dizem 1959). O vídeo em russo – que mistura imagens reais e encenadas – pode ser visto abaixo. Infelizmente, não há legendas em português ou inglês.
O que deu errado
Após 1961, o nome de Kupriyanovich nunca mais foi mencionado na imprensa soviética. Sabe-se que, em 1965, uma empresa búlgara chamada Radioelectronica se baseou no projeto do LK-1 para construir um telefone móvel com estação-base para 15 assinantes. Um ano depois, a mesma companhia construiu um sistema mais amplo para os modelos, que receberam os nomes de RAT-0.5 e ATRT-0.5. O sistema seria usado por departamentos de comunicação na indústria de construção até os anos 1990.
A União Soviética, por sua vez, deu início a um serviço nacional de telefonia móvel civil em 1958, um ano após o lançamento do LK-1. Baseado no padrão soviético MRT-1327, o Altai pesava 11 quilos e era exclusivo para automóveis, sendo instalado geralmente no porta-malas de veículos de alto escalão.
Os principais desenvolvedores do Altai foram o VNIIS (Instituto de Pesquisa Científica de Comunicações de Voronej) e o GSPI (Instituto de Projetos Especializados do Estado). O serviço começou primeiramente em Moscou, em 1963, mas sete anos depois, já estava disponível em 30 cidades da URSS.
Não sabemos o porquê de Kupriyanovich ter se afastado de sua invenção, considerada hoje por alguns como o primeiro telefone celular da história. A partir do fim dos anos 1960, ele passou a se dedicar à criação de equipamentos médicos, inclusive construindo um dispositivo para controle de sono e vigília. Publicou vários artigos sobre memória e hipnopedia e morreu em 1994.