Como a Arm se tornou a desenvolvedora de chips mais importante do mundo - Vida Celular

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Os processadores da Arm estão em quase todos os lugares. É bem provável, diga-se de passagem, que o smartphone que você esteja usando agora tenha um processador feito com essa tecnologia, seja ele um Android ou um iPhone. Afinal, a Arm há anos licencia sua arquitetura de chips para uma miscelânea de terceiros, entre eles empresas líderes na indústria mundial da tecnologia como Apple, Samsung e Qualcomm.

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Este, aliás, é o aspecto curioso da outrora pequena companhia sediada em Cambridge, a cidade do “Silicon Fen” (brejo do silício, em tradução livre), área na qual estão estabelecidos diversos negócios de alta tecnologia na Inglaterra. Funciona assim: a Arm projeta componentes de processadores para outros construírem. Seu modelo de negócios consiste em licenciar a propriedade intelectual de tais componentes e seus conjuntos de instruções para outras empresas, possibilitando a elas que desenvolvam sistemas em torno deles. A empresa britânica faz o trabalho sujo, diriam as más línguas, com a exceção de que poucos no mundo são capazes de cumprir bem essa tarefa.

Presentes em todo o mercado

Muitos smartphones e tablets de Samsung e Apple, e praticamente todos os processadores concebidos pela Qualcomm usan alguma propriedade intelectual da Arm. Especialmente pelo baixo consumo de energia, uma nova leva de SoCs (systems-on-a-chip) baseados na arquitetura da empresa inglesa já lideram a competição no mercado capitalista contra processadores do tipo x86 — explicaremos mais abaixo o porquê.

Cada empresa que fabrica um processador com chips da Arm também desenvolve um sistema próprio: o Snapdragon 888 é diferente do Exynos 2100, que é diferente do Dimensity 1200, embora os três usem o Cortex-A78, da empresa inglesa. As combinações, na verdade, são imensamente versáteis, o que, em certa medida, torna a fabricação destes chips da Arm interessantes para as grandes fabricantes, uma vez que elas ganham um leque de opções personalizáveis para montar seus SoCs. Como a própria empresa esclarece em seu manual de referência, sua arquitetura é definida não por uma estrutura específica que deve ser seguida e sim um “comportamento de máquina abstrata chamada de elemento de processamento”.

A história de como a empresa ganhou os holofotes do mundo da tecnologia também é um tópico à parte, o que iremos discutir nas próximas linhas.

Apple iPhone 11 Pro e Samsung Galaxy S10

iPhone 11 Pro e Samsung Galaxy S10: concorrentes no mercado, mas unidos pela Arm (Ivan Balvan/iStock)

O que torna a arquitetura da Arm especial?

A palavra “arquitetura” tem diversos significados. No caso dos microprocessadores, “arquitetura” se trata da lógica digital que fornece um conjunto de instruções a ser executado. Em sua estrutura, constam registradores, memória, unidades lógicas aritméticas (as ALUs), unidade de controle e uma série de blocos lógicos digitais que, juntos, formam o processador.

O “R” no acrônimo Arm vem de Reduced Instruction Set Computer (Risc) — “computador para conjunto de instruções reduzidas”, em tradução livre. A ideia por trás deste padrão é permitir que todas as atividades do processador sejam executáveis em apenas um chip. Ou seja, manter um número restrito de instruções para codificar um menor número de bits. Em termos práticos, isso se converte em menor consumo de memória, menor dissipação de calor na área do processador, menor tempo de execução e, o que é mais importante para a indústria, menos custo.

Nesse ponto, a arquitetura dos chips da Arm se difere da x86, da Intel, que adota padrões como o Complex Instruction Set Computers (Cisc) — “computador para conjunto de instruções complexas”, em português. Neste regime, a potência provém da capacidade de concluir um grande conjunto de tarefas com apenas uma única instrução. É o caso do processamento vetorial da Intel, que é capaz de rodar 16 operações matemáticas de precisão simples ou oito operações de precisão dupla de forma simultânea.

Do ponto de vista conceitual, alguém pode argumentar que isso facilite a matemática requerida para processadores: afinal, uma ação simples em um chip Cisc, como limpar registros ativos, precisaria de um ciclo completo em um Risc. Mas não é bem assim: como o chip Risc precisa de menos bits para executar seu conjunto de instruções, as tarefas são concluídas de forma mais rápida, uma vez que estas são mais simples.

Portanto, embora as duas tenham quase o mesmo retorno de tempo para conclusão de tarefas, a Cisc necessita de mais linhas de comando. Isso acaba afetando no desempenho do resto do sistema, tornando a arquitetura Risc mais eficiente e mais interessante para dispositivos portáteis, como smartphones e laptops. A arquitetura Risc também é adotada para uma parte significativa dos videogames produzidos hoje em dia.

Escritório da Arm, em Cambridge (Inglaterra)

Escritório da Arm, em Cambridge, sudeste da Inglaterra (Cmglee/Wikimedia/CC)

De onde veio a Arm?

A história da Arm é um tanto obscura e provavelmente uma das mais interessantes de se contar, porque reúne uma sequência de eventos aleatórios, não planejados e improváveis que culminam, de alguma forma, na atual hegemonia da companhia nos smartphones. Claro, não sejamos incautos: embora pareça obscura para boa parte do público, a Arm nunca se tratou de um “underdog”. Desde o início, para se ter uma ideia, foi financiada pelo governo britânico, embora tenha quase falido no meio dos anos 80. Porém, o que surpreende é como os eventos se desenrolaram quase por pura contingência, sem grandes narrativas empreendedoras por trás, como é o caso da Apple.

Para começar, o nome da empresa sequeré esse. A pequena Acorn Computers, fundada em 1978, inicialmente projetava sistemas computacionais para máquinas caça-níquel. A partir daí, transformava estes sistemas em pequenos microcomputadores baseados em processadores 6502, da Motorola — a mesma família de CPUs que equipava o Apple II e os consoles de videogame Atari 2600 e Commodore 64. Posteriormente, a fabricação desse computador foi subsidiada pela BBC para fins educativos, que à época o transformou em um dos produtos de informática mais populares no Reino Unido: o BBC Micro.

BBC Micro

Lançado em 1982, o BBC Micro, apesar do sucesso, foi vítima de uma engenharia excêntrica. Isso porque a Acorn teve que replicar na placa-mãe o posicionamento do dedo de um dos engenheiros para a máquina funcionar. Ninguém jamais soube do erro de projeto, mas também ninguém reclamou. Steve Furber, um dos compositores da obra e hoje professor da Universidade de Nottingham, explica no vídeo abaixo.

Esse primeiro esforço da Arm levaria a inovações maiores. De olho no avanço protagonizado por computadores como o PC, da IBM, e o Apple Lisa, os britânicos passaram a experimentar com diversas CPUs, como a Motorola 68000 e a 65816. Chegaram à Intel, inclusive, com um projeto de adotar suas CPUs 80286, mas a empresa americana os ignorou. Foi aí que a brilhante Sophie Wilson, cientista da computação transgênero — pouco lembrada até hoje —, teve a ideia de desenhar o chip Risc, que literalmente criou a base do mundo digital contemporâneo no século XXI.

O primeiro computador pessoal com o microprocessador foi o Acorn Archimedes, lançado em 1987. Três anos depois, a empresa firmou parceria com a Apple para desenvolver o Risc e daí surgiu uma nova companhia, a Arm — uma sigla para “Advanced Risc Machines” —, que unia, em uma joint venture, a Acorn, a empresa de Steve Jobs e a VLSI Technology, fabricante de circuitos integrados. Já no primeiro iPhone, lançado em 2007, a Apple utilizava um processador baseado em chips da Arm; o que sucedeu a isso, virou história.

Onde os processadores da Arm podem ser encontrados?

Como se sabe, no entanto, a Arm não restringiu sua produção de chips aos celulares Apple. Na verdade, um dos trunfos da empresa britânica no mercado é o alto potencial de customização de seus núcleos. Na lista de produtos, há processadores comercializados para uma variedade de funções e outros específicos para uma ou duas. Por conta disso, a Arm divide sua produção por classes, dentre elas o Cortex-A, o carro-chefe da companhia e o que nos interessa aqui, justamente por ser o componente mais usado para produzir SoCs para celulares.

O tour de force dos chips Cortex-A é o Neon, um sofisticado conjunto de instruções de dados múltiplos (SIMD) que executa operações para acessar a memória e processar dados em paralelo a um conjunto maior de vetores. Como a própria Arm explica, o Neon é capaz de “acelerar processamento de sinais algorítmicos e funções para acelerar aplicações como processamento de áudio e vídeo, reconhecimento facial e aprendizado de máquina”. Imagine, então, entrar em um posto de gasolina e ter combustível suficiente para oito ou 16 tanques: esta é a ideia básica dessa extensão.

Em 2021, quase todas as grandes fabricantes usam a arquitetura Arm. Durante vários anos, a Apple fabricou uma variedade de desenhos baseados nos projetos da empresa britânica para iPhones e iPad. Em tempos recentes, da longeva parceria entre as duas empresas, nasce o M1, primeiro processador produzido no processo de 5nm e um marco na história do Mac. Outro SoC fabricado pela Apple que se destacou nos últimos anos foi o A14 Bionic, que alimenta todos os modelos da linha iPhone 12.

Concorrentes como Qualcomm e Samsung também licenciam chips da Arm. O modelo mais recente da Qualcomm, o Snapdragon 888, é equipado com oito núcleos Kryo 680, uma linha de microprocessadores baseada no Cortex-X1, Cortex-A78 e Cortex-A55. SoCs com linhas antigas, como a Krait, também eram produzidos com base na tecnologia britânica.

A Samsung fabricou a linha Exynos com chips como o Cortex-X1, no modelo 2100, o Cortex-A77, nos modelos 880 e 980, e o Cortex-A55, no 850. Já a MediaTek emprega a arquitetura Arm em todos os smartphones das linhas Dimensity e Helio G e P. Recentemente, a empresa lançou os novos chips Armv9: Cortex-X2, Cortex-A710 e Cortex-A510.

O futuro

Há um pouco de hipérbole nisso, mas é possível dizer que hoje vivemos em um mundo Arm. Embora poucas pessoas — especialmente no Brasil — sejam capazes de comprar um Mac com o chip britânico, qualquer um possui um celular com processador Arm ou opera serviços digitais alimentados por sistemas integrados concebidos pela Arm, como, por exemplo, o Google Cloud e a Amazon.

Na medida que o mundo se torna centrado nos celulares, também faz sentido que a indústria da tecnologia aposte nos chips projetados para dispositivos móveis. Embora o x86 ainda ganhe em potência bruta, o silício projetado pela Arm oferece maior duração de bateria e esquenta menos, além de serem mais baratos de fabricar. O criador do Linux, Linus Torvalds, traz contrapontos interessantes para a discussão, levantando que os servidores da Arm ainda não são adequados para PCs. Mas, com o lançamento da arquitetura Armv9 e alguns sucessos como o recorde do supercomputador Fugaku, a Arm tende a expandir seus tentáculos nos próximos anos.

Vale observar que a empresa terá aporte de sobra. Nada restou da pequena companhia em Cambridge que vendia sistemas de computação para máquinas caça-níqueis. Em novembro do ano passado, a Arm foi adquirida pela americana Nvidia por US$ 40 bilhões. A transação ainda está sendo investigada, visto que o governo britânico vê a aquisição da empresa por uma companhia estrangeira como um risco à segurança nacional, mas os planos são quase megalomaníacos. “Unindo os recursos de computação de inteligência artificial da Nvidia com o vasto ecossistema de CPU da Arm, vamos avançar na computação de nuvem, smartphones, PCs, carros autônomos e robótica e expandir a computação de IA para todos os cantos do globo”, disse o CEO da Nvidia, Jensen Haung, quando do anúncio da compra. Aguardemos se vinga.