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Mais de 70 anos atrás, um cineasta francês chamado J. K. Raymond-Millet profetizou o século XXI com precisão. Não é exagero. Baseando-se na obra do escritor de ficção científica René Barjavel, Millet dirigiu um média-metragem educativo, “Télévision: Oeil de Demain” (“Televisão: Olho do Amanhã”, em português), no qual retrata pessoas em espaços públicos com pequenos dispositivos de mão assistindo a filmes e lendo notícias. Familiar? Sim, em outras palavras, Millet previu, em 1947, o nosso vício contemporâneo em celulares e smartphones.

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O grau visionário do filme é espantoso. Como o leitor pode ver no vídeo (o áudio apenas em francês, infelizmente), Millet também conjectura as consequências da saturação tecnológica. Isto é, pessoas incomunicáveis olhando para as telas enquanto andam nas ruas e esbarrando umas nas outras. Em um determinado trecho do filme, inclusive, assistimos a um acidente de trânsito que resulta de uma distração provocada pelo vício nesses “celulares” primitivos, que para ser mais preciso, são mostrados como pequenas TVs portáteis.

Qual a história do documentário que previu nosso vício em celulares?
Screenshot do filme "Télévision", de J. K. Raymond-Millet preve nosso vício em celulares

Filme retrata pessoas em praça pública com seus “celulares primitivos” em mãos (INA)

Produzido para o INA (Institut National de L’Audiovisuel, ou Instituto Nacional do Audiovisual), “Télévision” começa como um documentário educativo, mostrando o lado operacional de uma transmissão televisiva e detalhando aspectos técnicos relativos a câmeras, cabos e afins. Vale observar que a TV no fim dos anos 1940 era algo equivalente a um carro autônomo nos dias de hoje: um objeto pouco acessível, mas atraente às massas pelo visual futurista e pela sua promessa tecnológica.

Pouco depois desse momento, o documentário avança ao trecho distópico, composto por uma série de esquetes que misturam cenas de humor com tons de surrealismo. “Você já pensou em todas as coisas possíveis de agora em diante?”, prenuncia o narrador. As esquetes, então, detalham o aspecto cognitivo desta tecnologia, mostrando como a televisão poderia se apossar da vida social e provocar resultados caóticos nos campos do entretenimento, da informação e até da segurança pública.

Vigilância, notícias em tempo real e realidade aumentada

A precisão do futurismo em “Télévision: Oeil de Demain” é aterrorizante não apenas pela representação fidedigna do vício em celulares, mas pelo contexto esboçado por Millet. Em uma das esquetes, o cineasta encena o trabalho diário da polícia do futuro: em vez de patrulhas nas ruas, guardas equipados com um arsenal de câmeras nas delegacias para vigiar “a vida na capital”. Algo não muito diferente do que se segue nos dias de hoje.

Em outra esquete, talvez a mais visionária, um grupo de pessoas é visto em uma praça pública engajando com um dispositivo portátil em mãos. De acordo com o narrador, tal dispositivo viria para “substituir os jornais e exibir os comentários políticos, o desfile de moda e o boletim esportivo”. Pouco depois, um homem também é visto assistindo a uma série (ou uma novela?) no meio da rua com seu smartphone da Guerra Fria. Impossível uma analogia mais acertada com o nosso vício em smartphones e streamings, não?

Filme também previu algo parecido com a realidade aumentada

Por último, já no encerramento do filme, uma cena mostra um casal deitado em uma cama se preparando para dormir. O homem, insone, aguarda a esposa adormecer para ver um holograma de uma mulher dançando no pé do colchão – não se sabe exatamente como ele aciona a “representação 3D”, mas seria algo como tal nos dias de hoje. A cena, um tanto bizarra, remete a um misto de lapso de assombração com tecnologia de realidade aumentada.

Procurando na internet, não há informações sobre como o público dos anos 40 recebeu “Télévision: Oeil de Demain”. Além do filme que de certa forma profetiza nosso vício em celulares, Millet, que também era jornalista, dirigiu pouco mais de 50 filmes e morreu em 1974, aos 72 anos. Tantas décadas após “Télévision”, no entanto, sua obra permanece mais atual do que nunca.

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Imagem: ViewApart (iStock)